IIRSA: o futuro do continente como mercadoria futura

por Luis Novoa Garzon – Em agosto de 2000, em Brasília, com o patrocínio do BID-Banco Interamericano de Desenvolvimento, do CAF –Corporação Andina de Fomento, e FONPLATA– Fundo de Desenvolvimento da Bacia do Prata e a presença de representantes dos 12 países sul-americanos, foi lançada a IIRSA, Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana. Essa iniciativa propõe recortar o continente sul-americano em dez faixas prioritárias para investimentos em infra-estrutura tendo em vista o potencial exportador de cada uma delas. É preciso lembrar que os setores de infra-estrutura definem o modelo produtivo que vai prevalecer daí para frente. Energia, transportes e comunicações podem servir ao povo, ao desenvolvimento das comunidades, ao intercambio cultural. Por outro lado, grandes projetos energéticos e de transportes servem para fortalecer ainda mais os grandes grupos econômicos nacionais e internacionais, baixando seus custos e aumentando sua escala de produção e escoamento. Por isso mesmo, multinacionais, mineradoras, empresas pecuaristas e monocultoras de soja, celulose e cana é que serão as beneficiárias diretas desses projetos.

A IIRSA representa um marco lógico orientador da integração subalterna do continente sul-americano aos mercados mundiais com participação ativa dos Estados nacionais já profundamente reformulados por medidas de ajuste e por reformas institucionais e administrativas correspondentes. Como se fora uma ALCA processual incubada em nossos países sob a forma de agendas de integração e desenvolvimento.

Estamos chegando ao estágio final das reformas neoliberais levadas a cabo desde os anos 90. Os setores econômicos que sobrevivem aos processos de reestruturação são absolutamente dependentes dos mercados internacionais como supridores, intermediários ou distribuidores. Ao invés do tripé desenvolvimentista dos anos 60/70 ( Estado, capital nacional e capital estrangeiro) o que se prefigura em iniciativas como a IIRSA é a instauração de um processo decisório público-privado que operacionaliza e naturaliza a lógica do capital financeiro e dos setores privatistas, em nome da competitividade e do crescimento. É o disciplinamento de nossos territórios através de novos espaços institucionais, novas lealdades e consensos de novo tipo.

IIRSA, mas pode chamar de PAC

A IIRSA não poderia deixar de ser um desdobramento natural da política econômica e de comércio exterior dos anos FHC. Mas não houve mudança de rota sob a égide dos anos Lula. Lula se elege e se reelege com o compromisso de reciclar a fórmula neoliberal em crise, recebendo em troca trégua e apoio condicionado do setor empresarial e da banca internacional. O que foi e continua sendo exigido de Lula é a reformatação permanente de nossa dependência em termos de marcos regulatórios favoráveis aos negócios, de arcabouços fiscais, cambiais e creditícios que reforcem a progressão dos conglomerados e de projetos de infra-estrutura que otimizem a transnacionalização do território através de duradouras parcerias público-privadas.

Enquanto FHC absorvia placidamente os ditames dos conglomerados financeiros e os reproduzia como política oficial, Lula é mais pró-ativo ao estabelecer uma agenda própria de concessões e ao definir metas e cronograma para o processo de monopolização de nossa economia, a exemplo do Programa de Aceleração do Crescimento. O PAC trata de recuperar o papel intervencionista do Estado mas a favor dos grandes conglomerados. Resgata-se a seletividade na destinação de recursos públicos e subsídios não para fortalecer as pequenas e médias empresas ou setores essenciais mas para confirmar a “seleção natural” dos negócios.. Recupera-se a capacidade de investimento mas para ampliar a escala das economias de enclave, reais e potenciais. Depois do estrangulamento geral da economia nacional, vem a oxigenação condicional daquilo que interessa de fora para dentro.

A verdade é que a integração do continente sul-americano aos fluxos internacionais de mercadorias e capitais não se viabiliza sem a intermediação do Brasil, isso quer dizer, de seus setores econômicos internacionalizados e concentrados, com escala de atuação regional, e consequentemente de seu Governo, em grande parte devedor do dinamismo desses setores. Diferentemente de seus vizinhos, que se restringiram à produção primário-exportadora e/ou que se submeteram a extensos processos de desindustrialização, o Brasil reciclou seu parque industrial através de operações intra-firma que mantiveram o país, ainda que sob a égide da desnacionalização, com condições de produzir e exportar manufaturados com médio e alto valor agregado, com custos competitivos.

A internacionalização subordinada do continente sul-americana entrecruza-se portanto com uma regionalização ativa dos capitais de origem nacional ou postados no Brasil, com hegemonia do agronegócio e setores de serviços sob controle ou com forte participação do capital estrangeiro. A IIRSA reforça essa hegemonia à medida que prioriza a interligação bi-oceânica com corredores voltados para o Pacífico, para o cinturão asiático que mesmo com a recessão norte-americana continuará demandando volumes crescentes de energia e matéria-prima. A diplomacia brasileira tem procurado criar molduras institucionais que legitimem a expansão dos conglomerados sediados no país percebendo que a integração continental respalda a posição brasileira como receptor de novos investimentos, com capacidade de condicionar investimentos na escala regional, que sejam favoráveis ao país, ou seja, aos grandes grupos econômicos nele posicionados.

O empenho do “país” na construção da Comunidade Sul-Americana de Nações, hoje UNASUL, tem sido o de replicar a agenda da IIRSA e de neutralizar conflitos intra e extra-regionais, em especial com os EUA. Em paralelo a essa diplomacia formal, corre solta a diplomacia empresarial a cargo das próprias empresas brasileiras beneficiárias primeiras dos megaprojetos de interconexão e do BNDES que as tem turbinado. O Governo Lula alega que a integração física” do continente é pré-requisito para qualquer integração. Mas a integração “física” pretendida determina a integração possível depois dela: extrovertida, rebaixada, predatória. O capital estrangeiro de diversas origens (dos EUA/Canadá, da União Européia, da China, Coréia e Japão) vem disposto a fincar pé em setores de infra-estrutura e de commodities cruciais para a expansão das redes transnacionais, por isso definidores das competições inter-oligopólicas em curso.

Plasticidade sob encomenda

A pequena dotação total prevista(cerca de 70 bilhões de dólares para mais de 300 projetos) prova que a IIRSA é antes de tudo uma promessa de plasticidade territorial, institucional e política do continente sul-americano em adequação aos fluxos internacionais de investimentos e mercadorias. Promessa realizável à medida que cheguem investimentos diretos externos à altura da oferta. A IIRSA não pode ser encarada propriamente como um projeto substantivo e sim como uma metodologia de repasse de recursos naturais, mercados potenciais e soberania a investidores privados, em escala continental, com respaldo político e segurança jurídica.

Os grandes projetos viários, energéticos e de comunicações associados a medidas de “convergência regulatória” viabilizam a consolidação dos oligopólios privados na região e o estabelecimento de conectividades que nos transformam em estrangeiros em nossos próprios países. Os eixos e projetos da IIRSA são voltados para competitividade externa da região e não para gerar interdependência entre os países sul-americanos. Há uma hierarquia de prioridades na lógica da IIRSA que não corresponde aos interesses das nossas populações. Os setores rentistas e primário-exportadores por acaso são capazes de oferecer os empregos na qualidade e quantidade que precisamos? Desde quando são capazes de absorver e produzir conhecimento de ponta que nos leve a autonomia tecnológica? A que custo social e ambiental sustentam sua “competitividade”? Ou serão os investimentos externos, as transnacionais, com sua dinâmica auto-referente e autista, que irão nos salvar?

A integração energética e viária deveria ser uma meta estratégica dos estados sul-americanos,e não pauta e agenda de transnacionais e Instituições Financeiras Internacionais. Quem deveria definir os rumos da integração do continente? Se são os grupos econômicos mais fortes então essa integração não passa de uma cartelização com chancela política de Estados esvaziados. Seria preciso pensar a geração e a distribuição de energia no continente em função do incremento do dinamismo econômico regional, não em função das necessidades de suprimento de cadeias transnacionais de produção. A interligação viária deveria levar em conta a otimização das interdependências potenciais entre nossos países e regiões. Não se trata de ignorar o mercado externo. Podemos e devemos diversificar e valorizar nossa pauta de exportações e ao mesmo tempo gerar mais renda e mais empregos qualificados, com danos ambientais mínimos. Para isso seria necessário um planejamento público do setor de infra-estrutura, vertebrado por órgãos públicos com representação da sociedade civil e com suporte de estatais e bancos de fomento desprivatizados. Ou seja, na contra-mão de tudo que estamos vivenciando hoje no Brasil.

Como o planejamento desses projetos é processado de forma particularista, cujo objeto é a busca de máxima rentabilidade e de rápido retorno financeiro, acordos pré-licitatórios vem se tornando regra geral. O loteamento do continente sul-americano e do acesso privilegiado a suas riquezas é refém de práticas de monopólio, de abuso de poder econômico, de tráfico de influência e de toda série de favoritismos, como estamos vendo no caso do licenciamento e da licitação das Usinas Hidroelétricas no rio Madeira, que fazem parte de um dos mais vultuosos projetos da IIRSA. Esses megaprojetos mais que ofertarem insumos para ampliação da escala da exportação de commodities oferecem também facilidades regulatórias, sinalizam flexibilidade do setor de infra-estrutura em um continente com recursos e mercados estratégicos. Uma demonstração prática de como os espaços nacionais e o regional podem ser instrumentalizados para a causa suprema da atração de investimentos privados.

Quo Vadis?

O padrão de desenvolvimento vigente, capitalista global, com predominância financeira e neoliberal, está voltado para acumulação rápida, brutal e incessante. Expandir as fronteiras da rentabilidade pode significar valer-se de Estados decompostos no leste europeu, África ou na América Latina para privatizar serviços essenciais, monopolizar recursos naturais ou parasitar fundos públicos através de políticas macroeconômicas que oficializam o rentismo. Nesse padrão somos um espaço/tempo vazio a ser devidamente preenchido pelos requisitos dos “mercados”. Nosso papel histórico ficaria reduzido a um eterno jogo de mimetismo e/ou de antecipação dos desejos dos grandes investidores privados. O esforço do Governo Lula, manietado pelo setor privado em grande parte desnacionalizado, para alcançar o chamado “grau de investimento” (investment grade) demonstra isso.

Não podemos permitir que o país continue trilhando um caminho sob o qual não temos nenhum controle. Mas se queremos construir outro modelo de desenvolvimento temos que ter forças sociais mobilizadas e comprometidas com isso, senão não sairemos do campo das hipóteses.

A articulação dos movimentos sociais camponeses e urbanos com as populações tradicionais, especialmente as indígenas, é que poderá representar um obstáculo a essa política de tabula rasa dos capitais sobre nossos territórios, feitos de coletivos múltiplos e singulares dispostos a se reconhecerem e a se defenderem juntos.

L. Novoa Garzon es profesor de la Universidad Federal de Rondônia-UNIR, miembro de ATTAC, de Rede Brasil y de REBRIP. Publicado en el semanario Peripecias Nº 87 el 5 de marzo de 2008.