IIRSA: Neoliberalismo físico ou a versão territorial do livre comércio

por Luis Novoa Garzon – Redesenhar o continente sul-americano, com vistas a uma meticulosa redefinição de seu papel na divisão internacional do trabalho, a partir da montagem de uma infra-estrutura regional especializada. Esse é o objeto da IIRSA – Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana. Nada menos que a contrapartida física das políticas de livre comércio. Nada mais que uma integração regional facultada a alimentar os fluxos mundiais de capitais.

Enquanto perdura o vazio de projeto e de perspectiva conjunta, cristaliza-se uma agenda reflexa de desenvolvimento voltada para o aumento de escala e de produtividade das atividades e dos setores transnacionalizáveis. Cunhas inter-oceânicas para destampar “gargalos físicos”. Sangria desatada de nossas riquezas como o sistema circulatório normal das cadeias mundiais de suprimento. Dez megacorredores de exportação sulcados por 300 projetos de infra-estrutura considerados matriciais e ordenadores dos demais. Convergências regulatórias para destrancar os “gargalos institucionais”. Novas reformas privatizantes e liberalizantes para franquear recursos naturais e os setores de energia, transportes e comunicações dos nossos 12 países.

Diferentemente da ALCA, cujo referencial era a reestruturação hemisférica da economia norte-americana, a IIRSA surge em terreno latino, sul-americano, pós-colonizado, como tenebrosa flor de Lácio que brotou em meio à decomposição dos projetos nacionais nas décadas perdidas dos 80 e dos 90. Formalmente a IIRSA é um instrumento de cooperação intergovernamental mas, na prática, o que pode ser intersecção de governos que se fizeram rechear por interesses forâneos, ao longo desses anos, senão uma conjunção ampliada desses mesmos interesses?

Vocacionados ou condenados

Sem dúvida a América do Sul precisa e quer se encontrar, mas não em script alheio, batendo em retirada de uma outra América possível, na porta de saída, como amálgama de peças acessórias em busca disciplinada do encaixe perdido. O ciclo neoliberal que tentou converter nossos países em meras engrenagens dos circuitos produtivos e financeiros mundiais não se consolidou, sofreu reviravoltas na Bolívia, Venezuela e Equador, teve, em maior ou menor grau, ritmo e forma alterados na Argentina, Uruguai, Brasil e Chile. As políticas unilaterais de abertura e de subordinação passiva descarrilaram pouco depois de dez anos de aplicação. Estão em jogo nesse momento memórias conflitantes acerca dessa trajetória. Para saber aonde vamos é preciso concluir primeiro aonde chegamos. Descaminhos de repente se tornam caminhos irreversivelmente impingidos ao território. Inscrita na pele, a condenação de imediato passa por vocação.

Caroline Renteria, colombiana que assume este ano a presidência do CDE – Comitê de Direção Executiva, máximo órgão decisório da IIRSA, entrou na disputa dessa memória recente ao ressaltar que é preciso reforçar a imagem da IIRSA como “fórum de intercâmbio de experiências entre os países sul-americanos”. No balanço dessas experiências irão prevalecer as privatizações selvagens, o legado dos desmontes, o arsenal de facilidades logísticas, financeiras e regulatórias em favor do determinismo dos investimentos privados, ou o aprendizado do fracasso dessas mesmas políticas derrogatórias que nos levaram, com governos ou sem governos, a procurar novos espaços políticos cujo maior mérito é sua indeterminação?

A depender da estrutura administrativa herdada e reciclada pelo sistema de financiamento multilateral da Iniciativa, cujo ponto focal é o BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento, a IIRSA será um instrumento privilegiado de expansão dos oligopólios postados no continente ou fora dele. As translatinas, em especial as “brasileiras”, já vêem a IIRSA como plataforma de consecução de suas estratégias regionais, e o BNDES tem se colocado a serviço delas, revelando até onde pode ir seu conteúdo “público”. A integração dos negócios avança sem anteparos, sem que amadureçam políticas e instituições comuns indispensáveis a uma verdadeira integração. As mediações inter-governamentais processadas pelo Mercosul, CAN e, mais recentemente, pela UNASUL, procuram desobstruir o comércio intra-firma na região e respaldar a multiplicação de plataformas de exportação.

A IIRSA portanto se move

Com a IIRSA, as regras pró-mercado ganham caráter impositivo e inapelável à medida que o continente vai sendo talhado “fisicamente” como uma zona de livre comércio. Para tanto, sua estrutura administrativa foi erigida como uma agência para-estatal a balizar as políticas econômicas, de infra-estrutura e de comércio exterior dos nossos 12 países. Para se ter uma idéia, o Comitê de Coordenação Técnica (CCT), composto pelo BID, CAF e FONPLATA, é que dita o escopo e as funções do CDE, o órgão inter-governamental supremo, em tese. Segundo os “assessores técnicos” do CCT, o CDE precisa incluir os ministérios-chave, a saber, o de Economia, de Infra-Estrutura e de Relações Exteriores, de acordo com as deliberações em questão. “Este enfoque permitiria que as iniciativas que envolvam decisões vinculadas a negociações internacionais com outros países, e/ou referidas ao financiamento de projetos e à implementação de marcos regulatórios e regulamentadores que facilitem a participação do setor privado, contem com o aval político integral, ao nível de cada governo, correspondente ao perfil e ao alcance das iniciativas a serem impulsionadas pelo Plano de Ação.” [1]

Enquanto se anuncia uma integração regional em nome dos povos, o cronograma de institucionalização da IIRSA se apressa em consolidar espaços para que as instituições financeiras internacionais promovam “assistência técnica em temas de infra-estrutura regional” para a adequada execução de “projetos de alto impacto para a integração física”. Projetos estes concebidos no auge da maré neoliberal, entre 2000 e 2002, e que por isso procuram conformar enclaves regionais especializados no escoamento de matérias-primas, na oferta subsidiada e desregrada de terra, água, energia e biodiversidade aos capitais. Desde quando o que é estratégico para transnacionais, bancos internacionais e países centrais é estratégico na mesma medida para nossos povos? Será que é preciso lembrar que a condição de expansão e de primazia destes sempre foi a unilateralidade, a falta de reciprocidade, o uso da força e da chantagem?

O Plano de Ação 2008 da IIRSA apresentado na última reunião do CDE não nos deixa esquecer. Preconiza-se como elemento indispensável para o fortalecimento da IIRSA a sua articulação com outros processos de integração, a exemplo da experiência colombiana ao compor o PPP – Plano Puebla Panamá. Plano que faz do México avassalado ao Império, cabeça de ponte para a extensão do Nafta – e suas redes de maquiladoras, cinturões primário-exportadores, e estoques de mão-de-obra temporária, a toda a América Central.

Dentro da noite veloz

Projetos como o PPP e a IIRSA pressupõem um estágio avançado dos processos de privatização e de liberalização econômica. As estratégias de deslocalização dos capitais e de formação de cadeias globais de suprimentos na periferia são definidas cada vez mais pelo perfil da infra-estrutura oferecida pelos países periféricos que disputam a condição de alvos preferenciais de investimentos. O oferecimento de vantagens regulatórias e logísticas em setores tão sensíveis como os de infra-estrutura funcionaria como um salvo-conduto para os investimentos nas demais áreas.

Os Estados na periferia, mais que reduzir as incertezas, têm se esmerado em construir certezas de rentabilidade, como se sua legitimidade fosse devedora da extensão e da qualidade do suporte fornecido à acumulação privada. Esforço que se desdobra na disponibilização de faixas territoriais isentas de ordenamento estatal, social ou comunitário, além das fronteiras nacionais, a novos arranjos de poder e a novas coerências. O problema da infra-estrutura programada para incrementar a mobilidade de mercadorias e de capitais é a antecipação de sua própria obsolescência. Territórios que só fazem girar, em pouco tempo são girados, até serem requisitados para novas funções sempre ditadas de fora para dentro.

Do total dos investimentos já empenhados nos projetos da IIRSA, 60% são oriundos dos tesouros nacionais enquanto os 40% restantes são divididos igualmente entre a iniciativa privada e as IFIS [2]. As populações estão arcando com sua própria descartabilidade sem saberem disso. A sedimentação das zonas de prosperidade nos países centrais depende da rotatividade de territórios na periferia e semi-periferia em competição auto-desfigurante. “Vencem” aqueles países/regiões capazes de antecipar potenciais instrumentalizações de seus territórios através de infra-estruturas especializadas e de marcos regulatórios maleáveis.

A IIRSA pretende ser uma demonstração de como quantidade – escala, vazão, fluxo – intercambia-se em qualidade – controle, eficiência e estabilidade. Os monopólios privados podem assim planejar a alocação de recursos no continente de forma desimpedida e com custos rebaixados na origem. A necessidade de dispor os espaços nacionais e o regional torna prioritária a reforma das regulamentações ambientais e sociais vigentes nos 12 países. A IIRSA já acoplou à implementação de seus projetos um instrumento de adequação ambiental e social, a Avaliação Ambiental e Social com Enfoque Estratégico (EASE). Seu objetivo é estabelecer “ações complementares para potencializar, do ponto de vista sócio-ambiental e cultural, os efeitos positivos dos projetos e minimizar seus impactos negativos.”

A EASE tal qual profecia auto-cumprida parte de fragmentos – os grupos de projetos que compõem cada “eixo de integração” -, para fragmentos conjugados – as “unidades territoriais intermediárias”. A EASE serviria, em suma, para orientar a “tomada de decisões ambientais, sociais, institucionais e econômicas para o melhor desenvolvimento possível dos Grupos de Projetos e a gestão de suas conseqüências.” [3] “Melhor possível”, na ótica dos formuladores e patrocinadores. E que meio ambiente e povos circunscrevam-se à “gestão das conseqüências” dos projetos.

Aterrissar as alternativas

Caracterizar a IIRSA como um vetor de agregação de coerência às políticas de liberalização comercial e de financeirização, em prol de sua efetividade, não é suficiente. Inútil reivindicar uma outra integração fundada no compartilhamento de habilidades, riquezas e potencialidades comuns sem que tenhamos estratégias, sujeitos e ferramentas que façam tais virtualidades descerem ao chão. Um marco alternativo de integração será resultado de experiências concretas de integração dos povos, acumuladas no exercício do controle de territórios e bens comuns. Como ainda não temos um programa de navegação fluvial na bacia amazônica voltado para a dinamização e fortalecimento dos povos amazônicos? Como ainda não concebemos matrizes energéticas diferenciadas por bioma, propiciadoras de múltiplas pequenas escalas até agora relegadas? Como podemos permitir que o agronegócio e agências multilaterais se encarreguem da gestão de nossas bacias hidrográficas e aqüíferos transfronteiriços?

Não basta proferir alternativas, precisamos salvá-las entrincheirando-nos diante do que pode torná-las impeditivas. Além da denúncia no atacado é preciso escancarar os interesses que se cruzam em cada projeto na IIRSA. Expor os grupos econômicos envolvidos e suas práticas predominantes. Provar no curso da edificação desses territórios empresariais o que eles são sem disfarces, desgastando-os, retirando-lhes legitimidade. É preciso desmistificar expectativas de parte considerável da população já desenraizada, por isso mesmo disposta a aceitar qualquer tipo de crescimento. E produzir conhecimento crítico enquanto mantemos vivas as trincheiras que sustentam o impasse no continente e seu futuro entreaberto.

Notas

[1] Comitê de Coodenação Técnica – Plano de Ação para a Integração da Infraestrutura regional da América do Sul – 2000 (tradução do autor) Disponível em 27 de março de 2008 aqui …

[2] Ver Plano de Ação 2008 da IIRSA disponível aqui …

[3] Disponível aqui …

L. Novoa Garzon es profesor de la Universidad Federal de Rondônia-UNIR, miembro de ATTAC, de Rede Brasil y de REBRIP.

Publicado por la Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA. Reproducido en el semanario Peripecias Nº 92 el 16 de abril de 2008